Os brasileiros estão afogados em sal.

Os rolinhos de massa branca, prestes a entrar no forno em uma das unidades da padaria Dona Deola, em São Paulo, seguem a receita para ter o sabor característico que o brasileiro tanto aprecia. Num ritual que começa antes de o sol nascer, os padeiros batem a massa, deixam-na descansar por três horas e a assam até ficar dourada e cheirosa. Entre os ingredientes fundamentais, há 1 grama de sal em cada pãozinho. “Por isso, o pão francês também é chamado de pão de sal”, diz Mariana Martinez, engenheira de alimentos da padaria Dona Deola, em São Paulo. Ele já foi mais salgado. Há cinco anos, a porção de sal no pãozinho que vai à mesa dos brasileiros diminuiu 10%. Mesmo assim, quem come um único pão francês ingere 20% de todo o sal que deveria consumir durante um dia – 5 gramas, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS). Para  nutricionistas e cardiologistas, é demais.

Na quantidade certa, o sal dá sabor e faz bem à saúde. O problema é o consumo excessivo, exatamente o caso dos brasileiros. Ingerimos entre 10 e 12 gramas por dia. Comemos 4,1 gramas de sódio, um dos componentes do sal –  mais que o dobro dos 2 gramas considerados saudáveis. Em excesso, o sódio contribui para o espessamento da paredes dos vasos sanguíneos e para a retenção de água no corpo – fatores que podem provocar aumento da pressão arterial, condição associada a ataques cardíacos e acidentes vasculares. Problemas cardiovasculares como esses são a principal causa de morte no Brasil.

Desde 2011, acordos firmados pelo Ministério da Saúde com setores da indústria alimentícia estabeleceram reduções graduais do sal em 35 tipos de alimento até 2017. Mas essas metas são mais indulgentes com o paladar que com a saúde dos brasileiros. Os acordos com a indústria têm pouco impacto na dieta do brasileiro, segundo um levantamento feito por pesquisadores da Universidade Federal do Rio de Janeiro e da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Em 2017, depois de feitas todas as reduções já acordadas, a quantidade de sódio que consumimos terá caído quase nada, 1,5%, quando o certo seria reduzi-la pela metade. “As primeiras metas estabelecidas foram muito tímidas”, diz Ana Paula Bortoletto, pesquisadora do Instituto de Defesa do Consumidor (Idec).

Ana e sua equipe analisaram as quantidades de sódio presentes nos produtos que compõem os acordos. Perceberam que as empresas atingiram as metas de redução antes dos prazos fixados pelo governo. O que poderia ser motivo de comemoração era sinal de problema. “A redução rápida só foi possível porque as mudanças na composição dos alimentos foram pequenas. Eles continuam com muito sódio”, diz Ana. Estudos sugerem que reduções de até 25% não alteram o sabor dos alimentos. Mas muitas metas não chegam nem aos 10% de redução, como nuggets (bolinhos de frango), cuja meta é 8%. “Poderíamos ser mais ambiciosos”, diz Ana, do Idec. O Ministério da Saúde estima que, para alcançar a meta de 5 gramas por dia, os brasileiros teriam de tirar do prato 109.000 toneladas de sal entre 2011 e 2017.

O percentual de redução foi estabelecido em discussões entre o governo e a Associação Brasileira de Indústrias de Alimentação (Abia), uma organização que representa cerca de 80% do setor. “Novas metas podem sempre ser discutidas e repactuadas, desde que levem em consideração a função do sódio nos alimentos e os desafios técnicos e tecnológicos envolvidos em sua redução, retirada ou substituição”, afirmou a Abia em nota. O sal também é usado como conservante e em processos industriais para evitar que certos insumos grudem nos equipamentos.

Na falta de referências internacionais capazes de indicar a quantidade saudável de sódio em cada produto, as metas foram fixadas com base na média dos produtos já no mercado. “Os acordos eliminaram excessos”, diz Michele Lessa, coordenadora-geral de Alimentação e Nutrição do Ministério da Saúde. Mas isso não quer dizer que ainda não exista gordura – ou melhor, sódio – para cortar. Desde 2006, o Reino Unido, pioneiro nesse tipo de política pública, reduziu em 15% o consumo de sódio entre os britânicos. As metas são mais ambiciosas que no Brasil (leia o quadro). Lá, também mais categorias passaram por adequações: 80, em comparação com 35 por aqui. Pelo menos 59 países já adotam políticas de redução de sódio. “Os países com melhores resultados foram os que conseguiram incluir grande variedade de produtos nesses acordos”, diz Jacqui Webster, diretora do Centro para Redução do Consumo de Sal da OMS.

A culpa pelo consumo excessivo de sódio não é só dos produtos industrializados. No Brasil, as receitas preparadas em casa, como o arroz com feijão, respondem por 74% da ingestão de sódio. Em países como Estados Unidos e Reino Unido, percentual semelhante cabe aos alimentos processados – um caminho que o Brasil parece trilhar. “O consumo de alimentos processados tende a crescer aqui”, diz Rafael Claro, professor do Departamento de Nutrição da Universidade Federal de Minas Gerais. Ensinar o brasileiro a tirar o saleiro da mesa é uma meta tão importante quanto reduzir o sódio dos produtos industrializados. “Para nós, as ações mais importantes são as que orientam a população”, diz Michele, do Ministério da Saúde. “Criamos um guia de alimentos que recomenda o uso de menos sal e lançamos campanhas on-line e nas redes sociais sobre a importância da redução do sal, além de programas em escolas”.

Parecem ações muito brandas para contornar nosso apreço pelo sal. “Esse desejo faz parte de um instinto de sobrevivência antigo”, diz oneurocientista Wolfgang Liedtke, da Universidade Duke, nos Estados Unidos. Quando os primeiros hominídeos surgiram na Terra, as fontes de sódio eram escassas e nossos antepassados aprenderam a entender que o sabor salgado era importante para a vida. Há uma associação no cérebro entre prazer e o sabor salgado. Liedtke e seus colegas descobriram que as áreas ativadas no cérebro pelo consumo de sal são as mesmas acionadas pelo consumo de cocaína, uma droga viciante. Mas isso é pré-história. Passou da hora de o brasileiro e a indústria enfrentarem a dependência do sódio.

Fonte: Época